domingo, 6 de dezembro de 2009

Incompleto

[Para um menino que me pediu um texto sobre desapropriação]

Ele tinha passos que gritavam estrada, quais me atraíram e não me impediram de segui-los e desejá-los. Eu decifrava cada parte dele como se fosse minha. Os pêlos exagerados, o sorriso de lado, os ombros largos, o pescoço moreno, os lábios de poeta, os olhos negros que refletiam a mim, os olhos que diziam o que eu era, os únicos espelhos do meu ser. As mãos dele percorriam o meu corpo, minha face, meus sonhos e eu já não sabia mais onde começava e tinha fim. Era como se eu fosse um filho dele, uma parte descolada que queria voltar de onde veio e ficar lá pra sempre, só pra sentir o gosto de ter em mãos tudo o que ele era, só pra saber o sabor de ser alguém por completo. Mas, ele era sempre meio. Meio gozo, meio beijo, meio sorriso... Meio! Enquanto eu dava dois passos, ele não completava o primeiro. Descompassávamos... Eu me vendo ali, diante de mim mesma, só que cada vez mais sem brilho, cada vez menos entregue, porque estava presa nos olhos que não olhavam só pra mim, estava encarcerada no olhar que queria devorar o mundo e não só o meu corpo. Minha imagem foi se apagando aos poucos. Cada parte que sumia eram cem punhaladas cravadas bem devagar em mim. Dói ser apagada dos olhos de quem você quer invadir, de quem você quer estar pro resto da vida. Dói não saber mais de si, como é sua imagem, como é vista no mundo e, sobretudo, dói só sentir essa dor num corpo que é seu, e que, mesmo assim, é desconhecido. Enquanto o outro encontra mais imagens pela estrada, eu continuo parada sem saber quem devo ser. O que fazer quando você mesma some do mundo, quando os olhos que são seu único abrigo não querem mais te ver?